Lei contra misoginia na web não será solução mágica, diz pesquisadora 6k2in
Em novo livro, pesquisadora do InternetLab se debruça sobre uma década de leis que tentam acompanhar desenvolvimento do mundo digital 37695b
Se engana quem pensa que a internet é e sempre foi uma "terra sem lei". É verdade que juízes de carne e osso e leis no papel têm tido cada vez mais dificuldade em regular esse ambiente. Entretanto, desde a sua criação, a web importou ordenamentos sociais estruturantes do mundo offline — entre eles, o machismo. o1j6q
É com isso em mente que Mariana Valente, diretora da InternetLab, uma das principais entidades de pesquisa em direito e tecnologia, disseca a evolução do ódio contra mulheres durante uma década no ambiente digital. O resultado disso está em seu novo livro "Misoginia na internet", lançado pela editora Fósforo.
Sobre ataques misóginos em fóruns, que chegaram a inspirar atentados no Brasil, a pesquisadora diz não acreditar em uma nova lei definitiva para proteger as mulheres.
"Acredito que a criminalização seria útil em poucos casos, como aqueles que espalham ódio em fóruns. Mas não resolveria o problema maior, que é uma questão social que requer uma abordagem mais ampla."
A autora discute como a promessa inicial da internet tornou-se um espaço por vezes hostil para as mulheres e como leis que poderiam ajudar a resolver o problema deixaram lacunas até hoje mal resolvidas.
Ressalta, por outro lado, que os movimentos feministas souberam se adaptar e usaram as plataformas digitais para influenciar e alterar significativamente o debate público sobre gênero.
O desafio, agora, é olhar para no que temos avançado não só na legislação, mas nas prioridades da sociedade e problemas abrangentes, como liberdade de expressão, desinformação, violência e até consequências imprevistas com o desenvolvimento da inteligência artificial (IA). Todas essas questões, diz Valente, têm também a misoginia como um pilar inegável.
Byte: Como a internet foi de uma promessa de liberdade a um lugar de opressão de mulheres?
Mariana Valente: Esse entusiasmo era talvez um pouco inocente e tecno-determinista. Muitos discursos ciberfeministas da época acreditavam que na internet as pessoas estariam discutindo sem a presença física dos corpos. Acreditava-se que as hierarquias existentes no mundo offline não seriam replicadas online.
Mas mesmo naquela época, quando as pessoas comunicavam em fóruns, já havia relatos de misoginia e discriminação. Há relatos de mulheres que fingiam ser homens para serem respeitadas nesses fóruns.
Se existia uma ideia de que era possível separar corpo e tecnologia, isso era ingênuo. Hoje é impossível afirmar isso, principalmente quando uma das formas mais prevalentes de violência de gênero na internet é a disseminação de imagens íntimas. As discussões não são mais apenas em fóruns localizados, mas em redes sociais dominadas por algoritmos.
Por fim, a visão inicial da internet era elitista. No início, era caro ter o à internet. As escolas não estavam conectadas, e somente aqueles que podiam comprar um computador e ter uma linha telefônica tinham o.
Byte: Algumas iniciativas feministas se adaptaram à internet e a usam a seu favor?
Mariana Valente: A relação entre feminismos e tecnologia é repleta de paradoxos. Enquanto existem maiores possibilidades de cometer violências, também há uma capacidade ampliada de articulação e debate.
O modo como os grupos feministas conseguiram se apropriar das tecnologias para influenciar o debate público é notável. Entre 2012 e 2022, o debate público sobre gênero mudou drasticamente. Revisitando matérias da época, como aquelas sobre a disseminação de imagens íntimas da atriz Carolina Dieckmann, é chocante ver como o gênero não era um foco.
Hoje, isso seria impensável. Esta mudança é em grande parte devido aos esforços dos movimentos feministas que usaram a tecnologia para também influenciar a mídia tradicional.
MISOGINIA NA INTERNET: UMA DÉCADA DE DISPUTAS POR DIREITOS q1n3z

Preço: R$ 74,90 (272 págs.); R$ 52,90 (ebook)
Autoria: Mariana Valente
Editora: Fósforo
Byte: Temos o debate ficando mais mais maduro com a aprovação de leis — como a Lei Carolina Dieckmann, Lei Rose Leonel, Lei Lola, Lei do Stalking e Lei de Violência Política Contra Mulher — com o ar dos anos">Não houve uma discussão ampla sobre como abordar esse tipo de misoginia que está surgindo em espaços radicais e se espalhando pelas redes sociais. Um dos agressores, por exemplo, estava no Twitter usando o nome de outro assassino misógino. A questão é que essa misoginia está se proliferando e não houve discussão adequada sobre como lidar com isso.
Byte: Como a arquitetura de cada rede social influencia o modo como a misoginia se instala e se prolifera na plataforma?
Mariana Valente: As arquiteturas desses espaços online têm uma relação muito íntima com o modo como se dá o debate. Elas, contudo, não são totalmente determinantes, pois como as pessoas usam essas arquiteturas faz muita diferença.
O Twitter até recentemente era um espaço para postar pequenos textos, enquanto o Instagram é focado em imagens. Mas a arquitetura também determina, por exemplo, o quanto você vê de pessoas que não segue, algo definido pelos algoritmos do feed.
Outra coisa que impacta é a moderação. Após a aquisição pelo Elon Musk, as políticas do Twitter tornaram-se menos restritivas.
Outro ponto é que, enquanto algumas plataformas são autogeridas como a Wikipédia, outras, como alguns fóruns, podem ter regras implícitas estabelecidas pelos próprios usuários misógionos, como expulsar quem defende mulheres. Além disso, aplicativos de mensagens geralmente não têm moderação.
Byte: A União Europeia deu um o à frente na regulação de redes e aprovou um robusto pacote de medidas neste sentido, o Digital Services Act (DSA). Podemos nos inspirar neles, em algum grau?
Mariana Valente: O DSA muda o foco do conteúdo individual para como as plataformas estão lidando com certas questões, destacando explicitamente questões de gênero. Isso é algo positivo que deve ser incorporado no Brasil.
O ponto crítico no debate de regulação no Brasil é determinar a autoridade que vai fiscalizar a legislação, que exige das plataformas um padrão de segurança e respeito aos direitos. O desafio é criar uma estrutura eficiente para avaliar isso.
Experiências internacionais, como a da Nova Zelândia, são interessantes. Lá, há um órgão que medeia conflitos relacionados a questões de gênero antes que cheguem ao judiciário.
A discussão de violência de gênero faz parte de todos os assuntos sérios, mas muitas vezes é separada ou marginalizada. A regulação da internet precisa integrar essa discussão de forma mais central.
Byte: A inteligência artificial pode potencializar a misoginia?
Mariana Valente: No contexto da inteligência artificial, há um intenso debate sobre discriminação algorítmica, que abrange questões de gênero, raça, sexualidade e classe social.
Embora a questão seja destacada em debates acadêmicos e políticos, em audiências públicas e outras instâncias oficiais é frequentemente deixado de lado.
Em um projeto proposto recentemente, incluiu-se o gênero como uma das formas de discriminação e reforçou-se o direito de não discriminação por sistemas algorítmicos. No entanto, essa ainda é uma proposta e o debate continua.
O problema não se limita à discriminação algorítmica. Há também questões sobre reconhecimento facial em espaços públicos, que é comprovadamente mais discriminatório contra pessoas negras, especialmente mulheres negras.
Byte: Em seu livro, você estuda o que ocorreu entre 2012 e 2022. E até 2032, o que espera que aconteça?
Mariana Valente: Atualmente, temos um debate muito mais adensado sobre as questões de gênero e a relação delas com a internet. Acredito que temos condições de avançar com esse debate. Porém, tudo dependerá da movimentação em conjunto com as forças conservadoras, que cresceram no país ao mesmo tempo que o feminismo.
Uma coisa que gostaria de ver evoluindo para outro caminho no Brasil é o debate sobre a liberdade de expressão. Nos últimos anos, esse tema ficou muito simplificado no país. Isso ficou evidente pela repercussão do livro. Sempre vejo algum comentário que, ao se deparar com o título sobre misoginia, já associa ao tema da censura.
Essa é uma visão reduzida do que é a liberdade de expressão. Falo de candidatas que desistem de suas candidaturas devido à violência online. Não se trata apenas do efeito individual; se uma candidata desiste por sofrer violência online, isso é uma mensagem para todas as mulheres de que isso pode acontecer com elas.
É essencial avançar nesse tema porque estamos em um ime. A liberdade de expressão não pode ser simplificada ao dizer que "termina onde começa o direito de outro". Se grupos, que chamamos de minorias sociais (mesmo que mulheres sejam mais da metade da população, e pessoas negras também) estão sofrendo ataques, é necessário entender esse contexto mais amplamente.