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Claudia Andujar  Foto: MARTIJN VAN NIEUWENHUYZEN / Velvet

Claudia Andujar registrou luta pela sobrevivência dos Yanomami e transformou sua lente em ferramenta de resistência 5m5lw

Foi entre os Yanomami que sua fotografia assumiu uma dimensão artística e humanitária inigualável 6u1c6u

Imagem: MARTIJN VAN NIEUWENHUYZEN / Velvet
  • Miriam Gimenes
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A suíça Claudia Andujar, fotógrafa e ativista pelos direitos indígenas, nunca precisou empunhar uma arma para defender o povo com o qual ou parte significativa de sua vida: os Yanomami. Com uma câmera na mão e inúmeras intervenções artísticas, desde que ela pisou pela primeira vez na Amazônia, em 1971, usou seu olhar fotográfico e humano como forma de transformar a realidade daqueles indígenas. 1g6z5u

Naquela primeira viagem, ela colheu registros para Revista Realidade, que teria uma edição especial sobre a maior floresta brasileira. No período que esteve por lá e nos anos seguintes, presenciou inúmeras tentativas de genocídio ao povo e, sempre que pôde, selecionou alguns de seus inúmeros registros, deu nova roupagem e os expôs em instituições prestigiadas no mundo todo. A luz dourada, por exemplo, presente em várias das imagens, é para lembrar o ouro do garimpo, responsável pela morte de povos originários deste território que se tornou nosso país. Suas obras, carregadas de simbolismo e denúncia, levaram ao mundo um alerta urgente: a sobrevivência dos Yanomami já estava sob ameaça. Claudia fez de sua arte um ato de resistência, um grito em imagens que ecoam até hoje.

Claudia na aldeia Catrimani de Roraima (1974)
Claudia na aldeia Catrimani de Roraima (1974)
Foto: Carlo Zaquini / Velvet

Em Claudia Andujar — Cosmovisão, exposição que ficou em cartaz de abril a junho de 2024 no Itaú Cultural, em São Paulo, foi possível ver as várias nuances de seu trabalho singular, que foi sucesso com o público. Com curadoria de Eder Chiodetto, seu amigo de longa data, foi mostrada toda maturação do que viria a ser o trabalho de sua vida em solo indígena. Um mergulho na obra, que abrangeu experimentações criativas, explorações artísticas e novas interpretações de séries.

Chiodetto conta que a ideia dessa exposição surgiu há alguns anos, mas, quando se deparou com o acervo de Claudia, teve de refazer a rota. “Ela tinha tudo armazenado dentro de um guarda-roupa, não estava em condições museológicas. Fui procurar meios de preservar esse acervo, recuperar e catalogar porque, na minha opinião, é um dos maiores patrimônios iconográficos deste país.” Conseguiu o financiamento pelo Itaú Cultural e o trabalho foi realizado em parceria com o Instituto Moreira Salles.

O seu prêmio veio quando recebeu o convite para retomar o projeto. Claudia, aos 93 anos, o encontrou em seu apartamento, na Avenida Paulista. Em uma das conversas, o curador a convocou para auxiliar o trabalho e teve uma surpresa. “Claudia, para a exposição ficar mais bonita, que tal você fazer um trabalho novo? Vamos trabalhar? O olho dela brilhou e eu vi, por essa sua reação, que ela ainda estava ali.”

A jovem Susi Korihana thëri em um igarapé, da série A Floresta, de 1972 a 1976
A jovem Susi Korihana thëri em um igarapé, da série A Floresta, de 1972 a 1976
Foto: Claudia Andujar / Velvet

Instinto de sobrevivência x4r4r

Mas é importante abrir um parênteses aqui para redesenhar a trajetória de Claudia e mostrar que este espírito de luta — de quem não se deixa abater, nem mesmo pela idade — não surgiu quando conheceu os indígenas. “Claudia é uma pessoa que tem a capacidade de zerar e recomeçar de uma forma incrível”, ressalta o curador. Nascida no dia 12 de junho de 1931, na certidão recebeu o nome de Claudine Haas, filha de mãe suíça e pai húngaro, judeu. Ela perdeu quase toda a família paterna no Holocausto, nos campos de Auschwitz e Dachau. Com a mãe, fugiu para Suíça e depois mudou-se para os Estados Unidos, a convite de um tio. Aos 17 anos e, em solo norte-americano, casou-se pela primeira vez e adotou o sobrenome do marido, Julio Andujar, refugiado da Guerra Civil Espanhola, de quem se separou meses depois. ou a adotar o nome Claudia e o sobrenome pelo qual ficou conhecida. Trabalhou como guia da sede da ONU e começou a se aproximar da arte.

“Sem dúvida, minha fotografia é marcada pelo meu ado. Um ado de guerra, um ado de minorias. Isso é algo que não só me preocupa, mas me perturba. É parte da minha vida. Me interesso muito pela questão da justiça e das minorias que estão tentando se afirmar no mundo, mas se deparam sempre com um dominador que procura apará-las”, disse Claudia Andujar em uma entrevista à iPhoto Channel

A convite da mãe, que já estava no Brasil com o marido, aterrissou em 1955 na terra que se tornaria sua morada. Sem capacitação formal em fotografia, os registros eram sua maneira de comunicação com as pessoas e com uma língua que ainda não conhecia. O primeiro contato com o povo indígena foi a convite do antropólogo e sociólogo Darcy Ribeiro, quando viajou ao Mato Grosso para conhecer a etnia Karajás, em 1958, já com uma câmera fotográfica em mãos, como ofício. As fotos que fez ali foram publicadas na revista Life. Chegou aos Yanomami na década seguinte, em pauta para a Revista Realidade. Em Roraima, suas lentes haviam se voltado definitivamente para o tema que marcaria profundamente sua trajetória profissional.

Foi entre os Yanomami que sua fotografia assumiu uma dimensão artística e humanitária inigualável. Usava, por exemplo, a luz natural da maloca para mostrar o que via além da lente. Com o auxílio de bolsas de pesquisas, ficava cada vez mais lá. Em 1976, seguiu em uma viagem histórica, a bordo de seu fusca preto, junto com o amigo missionário católico Carlo Zacquini. Durante 13 dias, foi de São Paulo a Roraima, e por conta da pressa, da janela do carro fotografou o que viu.

O resultado virou a série O Voo do Watupari, uma das 11 apresentadas no Itaú Cultural. E ganhou este nome por um episódio engraçado: quando ela chegou em Roraima, levou o carro de barco até a aldeia, lugar onde o veículo de quatro rodas era raro. “Quando ela chegou, rodearam o carro e ficaram rindo: ‘Claudia, achamos que você viria voando, mas você chegou em um urubu que não tem asas’”, conta Chiodetto. Urubu, na língua Yanomami, é Watupari.

Ela ficou por lá até 1978, fotografando desde atividades diárias até rituais xamânicos, quando foi enquadrada na Lei de Segurança Nacional pelo regime militar e precisou retornar a São Paulo. E aí seu ativismo ganhou mais força: criou a Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CY), posteriormente renomeada Comissão Pró-Yanomami, fundada ao lado de Zacquini. Junto a líderes indígenas como Davi Kopenawa, eles denunciaram as ameaças à sobrevivência dos Yanomami decorrentes do contato com não-indígenas e lideraram uma campanha pela demarcação de suas terras. O esforço culminou, em 1992, na oficialização do Território Yanomami, uma área de mais de 96 mil quilômetros quadrados, maior área indígena protegida do Brasil, que foi ratificada às vésperas da conferência da ONU sobre o clima Rio-92.

A série Marcados, de 1983, composta por fotos usadas nas fichas de acompanhamento médico dos Yanomami
A série Marcados, de 1983, composta por fotos usadas nas fichas de acompanhamento médico dos Yanomami
Foto: Cortesia Galeria Vermelho / Velvet

A série Marcados, de 1983, composta por fotos usadas nas fichas de acompanhamento médico dos Yanomami
A série Marcados, de 1983, composta por fotos usadas nas fichas de acompanhamento médico dos Yanomami
Foto: Cortesia Galeria Vermelho / Velvet

Estilo e ativismo 12641w

Claudia não só expandiu os direitos indígenas como também os limites da fotografia ao explorar experimentações técnicas e artísticas, como filtros coloridos, dupla exposição e intervenções pictóricas, aproximando-se da Pop Art e da arte contemporânea. Suas obras ganharam relevância global, sendo exibidas no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), Fundação Cartier em Paris, Pinacoteca de São Paulo e Instituto Inhotim. “Com Claudia Andujar, a fotografia brasileira expande os limites da função documental e a a absorver a subjetividade de quem está olhando. A carga humanista de uma determinada cena, nem sempre dada à primeira vista. Essa característica permitiu que suas imagens fossem apreciadas por seu valor de transformação do real”, afirma a curadora Lisette Lagnado, responsável por levar Andujar para a 27ª edição da Bienal de São Paulo, em 2006, e colocá-la em destaque na cena na arte contemporânea.

E a série escolhida por Lisette foi Marcados — também exposta no IMS, em 2019 — , registrada durante uma campanha de vacinação contra o sarampo, nos anos 80, na Amazônia. Ali o sentido de fichamento foi subvertido, e crianças ou idosos vinham com um número pendurado no pescoço, transformando o “marcados para morrer” em “marcados para viver”. “Cada fichamento significa um atestado de saúde. Há uma ambiguidade nesse gesto porque ao mesmo tempo que as epidemias são criadas pelo contato com os brancos, chegando até as aldeias junto com a construção de estradas, são eles também que levam os tratamentos e antibióticos necessários”, explica Lisette.

Mulheres dançam e cantam à noite na maloca (O Reahu, de 1974)
Mulheres dançam e cantam à noite na maloca (O Reahu, de 1974)
Foto: Claudia Andujar / Velvet

Partilha da mesma impressão o diretor artístico do Malba (Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires), Rodrigo Moura. O ex-curador-chefe do Museo del Barrio, em Nova York, foi o responsável pelo espaço dedicado à fotógrafa em Inhotim, na época em que foi curador da instituição. “Em 2008 estava fazendo a curadoria para exposição chamada Paralela, em São Paulo, junto com a Bienal. Entrei em contato com a Galeria Vermelho, que já representava a Claudia. Eles estavam fazendo pesquisa e descobriram no arquivo a série que chama Rua Direita, em que ela deita no chão, fica de cócoras e fotografa as pessoas ando na rua. Fiquei muito interessado e mostrei esse trabalho na exposição.” O que o tocou foi exatamente o entendimento forte de Claudia sobre o papel da fotografia como uma ação não iva, documental, mas algo que realmente pode transformar a realidade de um povo.

Ficaram próximos e, a partir daí, começou a “desenhar” um pavilhão permanente em Inhotim, com 1600 m², dedicado ao seu trabalho. Como forma de pesquisa, ele a acompanhou em duas viagens à Amazônia, a primeira em 2012, onde conheceu Davi Kopenawa, a associação Yanomami e Carlos Zacquini. “Nunca vi uma pessoa tão famosa na minha vida como a Claudia por lá. Gente que nunca tinha visto ela na vida a conhecia pelo nome. E ela já estava com problema no joelho. Levamos uma cadeira de rodas, veio todo mundo para receber, empurrar uma cadeira.”

“Ter conseguido essa organização do acervo dela foi uma das maiores conquistas da minha carreira” , diz Eder Chiodetto

Moura lembra que ela levou uma câmera, embora já não fotografasse mais nesta época. Mas chegou lá e não resistiu. “Acabei virando uma espécie de assistente de estúdio dela”, lembra o curador. Havia indígenas jovens organizando assembleias, com vestimentas diferentes, ela registrou tudo. Parte disso pode ser visto em um filme-curadoria que reúne quatro entrevistas feitas por Moura com Claudia, chamado A Estrangeira. Nesse documento biográfico, que pode ser assistido no pavilhão mineiro e em trechos na internet, ela detalha sua trajetória.

A última vez que os dois se encontraram pessoalmente, lembra Moura, foi em 2023, quando houve a abertura da exposição “A Luta Yanomami”, no The Shed, em Nova York, com curadoria de Thyago Nogueira, diretor de fotografia Contemporânea do IMS. “Foi um momento festivo, porque depois de um longo período muito difícil por conta do garimpo ilegal e falta de fiscalização, havia esperança. Estavam todos, inclusive ela, muito impactados e abalados pelo tamanho do estrago e do genocídio, e ela ou por isso muitas vezes na vida.” ou e lutou, sempre.

Série A Casa (1974)
Série A Casa (1974)
Foto: Claudia Andujar / Velvet

Seu vínculo com os povos indígenas permanece profundo e inquebrável. Parte dos lucros da venda de suas obras (cerca de 35 mil, cujos valores variam de R$ 15 mil a US$ 2,5 milhões no mercado secundário) é destinada a causas indígenas, financiando iniciativas essenciais como rádios comunitárias e farmácias. “Meus filhos são 20 mil Yanomami”, declarou em uma entrevista à Trip. Para Lisette, esse legado é claro: “Eu arriscaria afirmar que sua participação na CY (Comissão pela Criação do Parque Yanomami), que viabilizou a demarcação da Terra Yanomami na Amazônia, é como ela gostaria de ser lembrada. Não por acaso, Davi Kopenawa Yanomami a chama de mãe.”

E sua dedicação transcende até mesmo a vida: Claudia teria expressado o desejo de que, após sua morte, um ritual Yanomami seja realizado em sua homenagem. Assim, sua conexão com o povo que tanto defendeu permanecerá viva, como uma chama que jamais se apagará, e continuará a iluminar a resistência e a dignidade dos povos originários.

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Fonte: Velvet Conteúdos da revista Velvet